A breve história de Daniil Kharms |
Esta é a breve história de Daniil Ivanovich Yuvachev.
Começa na Rússia, em 1905, numa cidade com vistas para a Finlândia, que, na altura, era a capital do império do czar Nicolau II - S.Petersburgo.
O começo do ano foi atribulado. Estava frio, a Rússia estava em guerra com os japoneses, as pessoas das classes pobres tinham fome e decidiram dizê-lo ao czar. Juntaram-se uns poucos milhares e foram em passeio até perto dos portões do palácio imperial, onde vivia o czar, para mostrar que passavam dificuldades e entregar-lhe uma petição.
Embora a manifestação fosse pacífica, as tropas do czar dispararam sobre a multidão indiscriminadamente. A cena repetiu-se durante esse dia um pouco por toda a cidade, nos locais onde as pessoas se juntassem para se manifestarem.
O resultado foi perto de um milhar de mortos e o início da 1ª Revolução Russa, que viria a culminar em Outubro com a assinatura por parte do czar de um manifesto em que, entre outras coisas, consagrava a liberdade de expressão e assembleia e anunciava a criação de uma assembleia legislativa com representantes dos trabalhadores.
Quem viveu toda esta agitação foram dois habitantes de S.Petersburgo, que por essa altura, nesse princípio de 1905, passaram certamente por momentos de agitação mais íntima, empenhados na criação do futuro Daniil.
Estou obviamente a falar dos seus pais.
Aliás, agitação era algo nada estranho a esta família. O pai tinha sido preso em 1883 por pertencer a uma organização revolucionária que defendia os direitos dos camponeses - 'Vontade do Povo'. Cumpriu parte da pena na fortaleza de Schiesselburg e depois foi enviado para o extremo Este da Sibéria, para uma ilha agreste chamada Sakhalin, onde, por coincidência, veio a conhecer o famoso escritor Checkov, quando este lá passou uma temporada a fazer um censo da população da ilha.
Ivan Pavlovich Yuvachev, pois era assim que se chamava, quando saiu destas férias forçadas, estava transformado num religioso pacifísta e embrenhou-se (seria interessante pensar que por influência de Chekhov) na escrita. Entre outros trabalhos escreveu "Oito anos em Sakhalin" (sob o pseudónimo de I.P.Miroliubov) em 1901 e "A Fortaleza de Schisselburg" em 1907. Entretanto, já após a sua saída da prisão, em 17 de Dezembro (30 de Dezembro no calendário Gregoriano) de 1905, nasceu aquele a que chamou Daniil Ivanovich Yuvachev, fruto daquela pequena revolução no início desse ano.
E pronto. Estamos em S.Petersburgo no início do século XX. A Rússia já tem uma constituição, fruto da 1ª grande revolução e já tem um Daniil Yuvachev, fruto da outra revolução, mais familiar.
E agora? O que se passa na efervescente S.Petersburgo, estrategicamente pousada na fronteira Ocidental da incandescente Rússia?
Pois em 1914 é precisamente de Oeste que sopram os ventos. No dia 18 de Julho (1 de Agosto no calendário Gregoriano) a Alemanha declara guerra à Rússia. É a 1ª Guerra Mundial.
A mãe Rússia, ofendida, tira prontamente a pronunciação alemã do nome da sua capital, e S.Petersburgo passa então a chamar-se Petrogrado.
Entretanto, os pais de Daniil, ocupados com a educação do filho, enviam-no, em 1915, para a famosa escola alemã 'Peterschule' para aprender alemão (e não só). Começa aqui o seu interesse por um escritor que o vai acompanhar daqui para a frente - Lewis Carrol.
Em Fevereiro de 1917, reunem-se mais uma vez as condições para o início de outra revolução, a segunda (das grandes). Está frio, a Rússia está em guerra, as pessoas têm fome e estão insatisfeitas. Há motins e greves um pouco por todo o país e o inevitável acontece - em Março, Nicolau II abdica a favor do irmão Mikhail, que por sua vez põe o poder nas mãos de um Governo Provisório e do Soviete dos representantes dos trabalhadores.
Termina assim o período imperial da Rússia.
Em Outubro, na revolução com esse nome, o Partido Bolchevique com Lenine e Trotsky à cabeça, agarra as rédeas da imensa Rússia.
Este foi certamente um período complicado, em que a 1ª Guerra termina e a Rússia se afunda na guerra civil. Estamos em 1918, o Daniil é um jovem de 13 anos, a Rússia adopta o calendário Gregoriano (terminam-se aqui os parêntesis com as datas) e tem uma nova constituição - a de Lenine.
Um pouco mais longe destas complicações ficou o Daniil em 1919, quando trocou os ares eternamente revolucionários de Petrogrado pela casa da tia em Detskoe Selo, 25Km a Sul.
É por volta de 1922 que começa a nascer o Daniil escritor, quando ensaia os seus primeiros versos e os seus primeiros pseudónimos. A URSS também dá os seus primeiros passos. E como não há duas sem três, uma terceira força, que vai influir tragicamente no destino das outras duas, se agita na União Soviética - Estaline, que é nomeado Secretário Geral do partido.
O regresso de Daniil à cidade natal dá-se em 1924, para iniciar uma carreira técnica com os estudos no 'Leningrad Elektroteknicum'. Daniil, que tinha nascido numa S.Petersburgo agitada pela revolta e deixado Petrogrado durante a guerra civil, entra agora numa Leninegrado sem Lenine, falecido em Janeiro desse ano. Extremamente curiosa, esta cidade, que fervilha de tal forma que nem o nome sossega em paz.
Após deixar o 'Elektroteknicum' um ano depois da sua entrada, Daniil dedica-se a tempo inteiro à escrita. E a Kharms.
Kharms foi o pseudónimo mais utilizado por Daniil para assinar os seus trabalhos, mas, por superstição, ia variando a assinatura. No total utilizou mais de 30 pseudónimos. Entre os mais usados estão Charms, Harms, Shardan, Dandan. Kharms gostava de brincar com as palavras e os seus significados. A escolha dos pseudónimos parece vir precisamente da brincadeira com os sentidos das palavras inglesas 'charms' e 'harms' ou mesmo da alemã 'charme'.
Começa aqui a breve história de Daniil Kharms.
Em 1925 Kharms começa a fazer leituras públicas de poesias (suas e de outros poetas) e a frequentar serões literários. É neste meio que conhece os poetas Kliuev e Tufanov e se associa ao movimento ZAUM. É este ano que é aceite na secção de Leninegrado da 'União dos Poetas de Toda a Rússia'.
Chega a participar em algumas sessões de leitura de poemas "fonéticos" e criou, mais tarde, em 1926, juntamente com o seu amigo Vvedensky, um ramo do movimento Zaum a que chamaram 'Árvores Planas'. Kharms estava empenhado na sua carreira literária e vê um poema seu ser publicado numa colectânea de poesia da União de Poetas.
O futuro parecia sorrir ao jovem e promissor Daniil.
No ano seguinte, de novo é publicado um trabalho seu noutra antologia da 'União de Poetas'. Seria o último, sabemos nós agora.
Mas Kharms não sabia. E procurava avançar.
No final de 1927, o 'Árvores Planas' anuncia a criação do agrupamento literário e artístico OBERIU (acrónimo de 'Associação de Arte Real'). Para além de Kharms e Vvendensky, faziam também parte do grupo os poetas N. Oleinikov, N. Zabolotsky, I.Bakhterev, e estavam próximos do grupo outros artistas como os pintores Malevich e Filonov e o escritor K.Vaginov.
No manifesto que assinaram, os elementos do grupo afirmavam como seu principal objectivo representar o mundo de uma forma clara e objectiva através da arte. Diz Kharms numa carta a um amigo:
"Quando escrevo poesia, o mais importante para mim não é a ideia, não é o conteúdo e não é a noção obscura de "qualidade", mas sim algo ainda mais obscuro e ininteligível para a mente racional, mas compreensível para mim... Isso é -- a pureza da ordem. Esta pureza é a mesma no sol, na erva, no homem e na poesia. A arte real está lado a lado com a primeira realidade. Ela cria o mundo e é o seu primeiro reflexo."
Os "Oberiutas" faziam apresentações públicas em universidades, bares, acampamentos militares, em que liam poemas, faziam intervenções e representações. A noite "Oberiuta" mais famosa teve lugar em 28 de Janeiro de 1928, na Casa da Imprensa de S.Petersburgo, intitulada 'Três Horas Esquerdas'. Entra Kharms coberto de pó branco, com um casaco comprido decorado com triângulos vermelhos e um chapéu com pendentes, montado num guarda-fatos preto, movido por duas pessoas escondidas no seu interior. Declama então em voz forte alguns poemas fonéticos. A primeira hora foi toda dedicada à leitura de poesias pelos membros da Oberiu.
A propósito do armário, é curioso assinalar as seguintes "frases de guerra" do Oberiu: "A Arte é um armário" e "Poemas não são tartes; nós não somos arenques". Escreveria Kharms mais tarde: "Deve escrever-se poesia de tal forma que se atirarmos um poema contra a janela partimos o vidro."
Na segunda hora desse serão, foi representada a peça de Kharms 'Elizaveta Bam'.
Mas...
Durante o ano anterior outros movimentos se agitaram na Rússia.
Estaline, também ele empenhado no seu futuro, expulsara as principais figuras do Partido e assumira o comando. Enquanto os "Oberiutas" apresentavam o 'Três Horas Esquerdas', Estaline apresentava o seu Plano para 5 Anos de desenvolvimento industrial e Trotsky era deportado.
As noites agitadas do Oberiu começaram a tornar-se incómodas para o poder soviético e apareceram vários artigos em jornais a criticar o grupo e as suas apresentações.
Kharms, assim como Vvedensky, começaram a escrever para revistas infantis como forma de sobrevivência, pois eram estes os únicos trabalhos, por serem considerados inócuos, que conseguiam publicar.
Em Abril de 1930 o inevitável aconteceu. Após mais uma apresentação do Oberiu (num dormitório da Universidade de Leninegrado) e mais um artigo violento em que eram chamados de "arruaceiros literários", o grupo terminou a sua actividade.
Os escritos de Kharms viram ser assim ainda mais reduzida a sua divulgação, não passando além do grupo de amigos mais próximos. Mesmo a actividade para o público infantil não estava livre de perseguição.
Kharms entrou no novo ano de 1932 numa cela, após ter sido preso, juntamente com todo o corpo editorial da revista infantil ‘Yohz’ no último dia de 1931, alegadamente acusado de "distrair as pessoas da construção do Socialismo através de versos trans-racionais".
À prisão seguiu-se o exílio e só em Novembro de 1932 voltaria a Leninegrado, mesmo a tempo de assistir ao arranque do 2º Plano de 5 anos, em 1933.
A publicação de alguns dos seus textos infantis na revista ‘Chizh’, para a qual escrevia irregularmente desde 1930, era intercalada com períodos sem conseguir sustento. E apesar de escrever sobretudo para a gaveta da secretária, os seus escritos infantis levaram a que fosse aceite em 1934 na recém-formada União dos Escritores Soviéticos.
E os astros deviam estar numa boa disposição, pois foi também este o ano em que decidiu casar-se com Marina Malich. E em que começaram as purgas estalinistas.
Nos anos que se seguiram, Estaline, com requintes de crueldade, foi consolidando o seu poder e eliminando todos aqueles que lhe pudessem fazer frente. E os antigos Oberiutas também tiveram atenção especial.
O poeta N.Oleinikov é preso em 1937 e fuzilado em Novembro.
Nesse mesmo ano, Kharms é acusado de não dizer claramente às crianças "quem é amigo e quem é inimigo". Isto a propósito de uma história sobre um homem que saiu para comprar tabaco e desapareceu. Como consequência Kharms desapareceu das páginas da ‘Chizh’ durante um ano.
Em 1938 mais um oberiuta é preso: Zabolotsky é enviado para um campo de trabalho na Sibéria.
Incrivelmente, tanto Kharms como o seu amigo Vvedensky escaparam às purgas estalinistas dos anos 30.
Mas o final da década ainda guardava uma última grande surpresa – o início da 2ª Guerra Mundial.
No entanto, apesar das ofensivas militares soviéticas, ocupadas na ampliação territorial da URSS, a NVKD (antecessora do KGB) continuava a sua actividade interna e externa. Estaline não quis deixar pontas soltas e estendeu o braço até ao longínquo México onde Trotsky passava um exílio tranquilo. Em 1940 Trotsky é assassinado sob as quentes temperaturas mexicanas, simbolicamente com um machado de cortar gelo.
Em 1941 chegaria, final e infelizmente, a vez de Kharms.
A 22 de Agosto, dois meses depois da entrada do exército alemão na Rússia, Kharms é chamado ao pátio do prédio onde habitava pelo porteiro e sai de casa para não mais voltar. É prontamente arrastado, em trajes menores, para a prisão da NVKD e mais tarde transferido para um hospital-prisão.
Vvedensky seria preso no mês seguinte e morreria antes do final do ano na prisão, em circunstâncias desconhecidas.
E foi a 2 de Fevereiro de 1942, numa altura em que Leninegrado estava cercada pelo exército alemão, que Kharms acabou por sucumbir de fome na prisão.
Apesar de ter sido "reabilitado" em 1956 pelo Partido Comunista Soviético, já na era pós-Estaline, que morrera tranquilamente em 1953, só recentemente a obra de Kharms tem sido conhecida e divulgada, não só na Rússia, mas um pouco por todo o mundo.
É curioso observar que Kharms escreveu para uma geração que não era a dele. As crianças que leram as suas histórias e poemas infantis durante o regime estalinista são os adultos que mais de 30 anos depois assistiram às primeiras publicações dos escritos de Kharms "para adultos".
Da mesma forma que ouvimos hoje falar em pessoas que são "congeladas" em criptas criogénicas até a cura para a sua doença incurável vir a ser descoberta, assim os escritos de Kharms foram conservados para serem lidos mais tarde após ultrapassada a "doença" que vitimou a Rússia sob o regime de Estaline.
E para não acabar esta história com o nome anterior, terminamos com o nome do homem que a provocou: Daniil Kharms.