As voltas que demos sem sair do sítio

A antiguidade grega foi um 'big bang' da humanidade. O pensamento explodiu em múltiplas direcções. Se é verdade que no teatro, hoje, procuramos as nossas primeiras referências precisamente aí, nos poetas gregos de então, na ciência é aí que localizamos os primeiros homens 'científicos', nos filósofos que se interrogavam sobre o mundo.

As ondas dessa violenta explosão vêm-se propagando ao longo dos séculos e têm tal intensidade que não é raro apercebermo-nos que descobertas científicas recentes foram já ideias avançadas há mais de dois milénios atrás.

Nessa grande interrogação sobre o mundo, o homem clássico olhou também para o céu. E avançou inúmeras hipóteses para justificar o que aí observava. Se relativamente a uns assuntos as hipóteses que tiveram aceitação geral foram aquelas que ainda hoje mantemos, como é o caso da esfericidade da Terra, noutros casos o que permaneceu como acertado foram ideias que hoje consideramos falsas. Como é o caso do geocentrismo.

Na cabeça da generalidade das pessoas, a Terra esteve muitos séculos no centro do universo. Esta foi uma hipótese avançada, entre outros, por Aristóteles, e ele é, involuntariamente, uma das causas dela ter perdurado tanto tempo. O facto de ser um filósofo muito conceituado na Grécia de então, transformou certas ideias suas em dogmas que, mesmo já após a sua morte, ensombraram ideias alternativas avançadas por outros filósofos. Foi o que sucedeu com a ideia do heliocentrismo avançada por Aristarco de Samos ainda no século III a.c.. No século II da nossa era, um estudioso de Alexandria, Ptolomeu, compilou todo o saber sobre a posição e movimentação dos astros, tendo por base o modelo aristotélico e as construções geométricas dum astrónomo grego do século II a.c., Hiparco. A obra resultante, o 'Almagesto', por ser uma complexa explicação matemática que justificava o movimento dos astros tal como observado, perdurou como a "bíblia" da astronomia até ao século XVII.

Os motivos que levaram o geocentrismo fechar-se a ser questionado e a transformar-se em dogma, estão, a partir de certa altura, intimamente ligados à Igreja Católica.

O questionar dos céus e da posição da Terra no mundo manteve-se adormecido até finais da Idade Média. A Igreja Católica havia retomado Aristóteles e fundiu a visão deste do céu com as Sagradas Escrituras. Nomeadamente as ideias de imperfeição na Terra e perfeição no céu e a ideia da Terra ser o centro do universo e, consequentemente, o centro da atenção de Deus. O Almagesto, de Ptolomeu, tornou-se a obra essencial do ensino da astronomia, pois juntava a cosmologia geocêntrica de Aristóteles a uma explicação matemática que justificava o observado nos céus.

Foi com esta visão homo e geocêntrica perfeitamente enraizada no mundo católico que um religioso polaco, Nicolau Copérnico, iniciou uma revolução. Interessado pelo movimento dos astros no céu, começou a questioná-lo. A complexidade do sistema de Ptolomeu levou-o a considerar a hipótese da Terra se mover e não ser o centro do mundo. A resolução imediata que estas hipóteses traziam para alguns dos problemas existentes entre a teoria geocêntrica e o observado no céu fortaleceu a convicção de Copérnico de que a Terra se movia. Em 1507, incentivado por amigos, Copérnico escreveu uma primeira versão da sua teoria. Esse tratado, o 'Commentariolus', circulou por um grupo de pessoas mais próximas e apenas traçava um esboço das suas ideias heliocêntricas. A sua grande obra só viria a ser publicada no ano da sua morte. Escrita entre 1514 e 1530, 'De Revolutionibus Orbium Coelestium' (Da Revolução das Esferas Celestes) só em 1543 conheceu a luz do dia, pois Copérnico tinha consciência da reacção que tal publicação provocaria e receava represálias. Aliás, Martinho Lutero, ele próprio um revolucionário na sua posição face à Igreja Católica, afirmou em 1539, a propósito de Copérnico e das suas ideias, o seguinte: "Este tolo quer virar toda a ciência da astronomia de pernas para o ar! Mas, tal como nos diz a Bíblia, Josué ordenou ao Sol, e não à Terra, que se detesse no seu caminho!". Este conceito de ciência, ancorada na interpretação das Sagradas Escrituras, foi o grande adversário que a teoria heliocêntrica de Copérnico teve de enfrentar. Só cerca de meio século após a sua publicação, vemos o De Revolutionibus começar a despertar questões acerca da posição da Terra no mundo.

À medida que as observações do céu se tornaram mais rigorosas e em maior número, o complicado modelo geométrico de Ptolomeu começou a apresentar cada vez mais falhas. Surgiram então novos modelos dos céus. Tycho Brahe, um astrónomo dinamarquês, teve um papel essencial na recolha e compilação de dados sobre o movimento dos astros. Ele próprio apresentou um modelo para os céus em que deixava a Terra no centro do mundo com a Lua a girar em seu torno, mas, para uma maior concordância com os dados registados, colocava todos os outros planetas conhecidos a girar em torno do Sol, que por sua vez, girava em torno da Terra. O alemão Johannes Kepler, seu assistente, era um apoiante convicto do heliocentrismo de Copérnico. A partir dos dados precisos de Brahe, calculou que a órbita de Marte não era circular mas sim uma elipse com o Sol num dos focos. As suas leis do movimento dos planetas, válidas ainda hoje, são um marco importante na consolidação do modelo heliocêntrico. Foram uma confirmação mas, ao mesmo tempo, uma correcção do heliocentrismo de Copérnico, ao estabelecer as órbitas dos planetas como elípticas.

No entanto, tirar a Terra do centro do mundo não foi tarefa assim tão fácil. A doutrina da Igreja Católica, pesadamente apoiada na concepção geocêntrica do universo, oferecia uma forte resistência à mudança. Negar o geocentrismo era negar as Sagradas Escrituras, a palavra de Deus.

Uma série de tratados sobre o heliocentrismo apoiados em complexos cálculos matemáticos, afastados, por isso, do entendimento da grande maioria das pessoas, não ofereciam grande perigo ao repouso da Terra. Aquelas vozes mais empolgadas que poderiam agitar as consciências, eram apagadas nas fogueiras da Inquisição, como sucedeu ao padre dominicano italiano Giordano Bruno, em 1600, por defender o heliocentrismo e a ideia de um céu infinito.

Mas o "ver com os próprios olhos" foi um argumento muito mais forte e ao alcance de todos. Em 1609 Galileu Galilei começou a vasculhar o céu com a ajuda de um óculo. De imediato algumas ideias erradas sobre os corpos celestes começaram a cair. A ideia de perfeição dos céus, herdada de Aristóteles, foi posta em causa pela observação mais próxima da Lua, que revelou uma superfície acidentada, tal como a Terra. Os satélites de Júpiter descobertos por Galileu vieram mostrar que nem tudo rodava em torno de nós. E as fases que Galileu observou em Vénus indicavam que este planeta se moveria em torno do Sol. O próprio Sol rodava sobre si próprio e apresentava imperfeições, como o provavam as manchas solares observadas. Estas evidências, facilmente verificavéis através da simples observação, começaram a abalar o modelo geocêntrico do universo. E a abalar as bases da Igreja Católica. Galileu tornou-se, a par de Kepler, mais um importante partidário da teoria heliocêntrica de Copérnico. E um fornecedor das provas experimentais essenciais para a sua consolidação. Foi, por isso julgado e condenado pela Inquisição sob a acusação de heresia. Obrigado a renunciar às ideias que apoiava, ficou em prisão domiciliária até ao resto da vida, viu o seu livro ser colocado no índice de livros proibidos pela Inquisição e foi por ela interditado de publicar mais qualquer obra. Esta condenação tornou-se, nos dias de hoje, um símbolo em prol da liberdade de pensamento.

Mas o "mal" já estava feito. Embora não tão rapidamente como queria Galileu, a Terra foi saindo da sua posição privilegiada no centro do mundo e ocupando a sua posição privilegiada actual, em torno do Sol. Para onde irá a seguir?


Mário Montenegro - 2001

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