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Trabalhos:

Cadeia Elementar de Mário Montenegro (4 Jun 2002)


Este texto está integrado no espectáculo Tomada de Consciência que estreou a 24 de Março de 2004




Cadeia elementar

Notas prévias:

Estes diálogos foram pensados para serem representados por apenas dois actores, que se vão transformando ao longo do texto nas várias personagens.

Estas transformações devem ser inseridas na acção e visíveis fisica e psicologicamente.

 

O Sujeito 1 está à esquerda do Predicado 2. Este, por sua vez, está também de pé e à direita do Sujeito 1.

Viram-se um para o outro.

Começa o Sujeito 1:

"Isto está tudo mal. Tudo mal! O que é por cima está por baixo, o que é por baixo está por cima! Não fazes nada direito? É preciso estar sempre em cima, sempre a controlar? E porque é que aquilo ainda não está resolvido? Hã? Porquê? Também tenho de ser eu a fazer isso? Tenho de ser eu a tratar de tudo?"

"Mas tinhas dito que isto já não era preciso…"

"O quê? Eu disse o quê? Nunca disse nada disso! Eu disse-te para tratar disso há já uma semana e uma semana depois chego aqui e o que encontro feito? Nada! Nada de nada! Nem a ponta de uma merda de nada! Não percebo o que andas aqui a fazer! Tenho de ser eu também a tratar disso? Tenho de ser eu a fazer tudo? Foda-se! Cambada de inúteis! Não servem para nada! Não sabem fazer nada!"

"Desculpa lá mas acho que disseste que já não era preciso…"

"Estás-me a chamar mentiroso?"

"Não…"

"Estás-me a chamar mentiroso? Já não basta não fazeres nada direito, sempre que mexes nalguma coisa sai merda, e ainda tens o desplante de me chamar mentiroso?"

"Não é isso…"

"Inútil de merda! Devias ter vergonha de andar aí a arrastar-te sem fazer nada direito. Eu não tenho idade para ser teu pai! Foda-se! Era o que me faltava! Ter agora que te ensinar tudo!"

"Ouve…"

"Tu não me levantes a voz, ouviste? Não te admito, ouviste? Não te admito! Estúpido de merda! Não faz nada direito! Foda-se! Eu vou-me embora. Vou-me embora pois já não consigo olhar mais para essa cara de parvo! Vou-me embora mas quando voltar quero esta merda toda resolvida, ouviste? Vê se fazes alguma coisa direito! Foda-se! Estúpido de merda!"

E rodeia o Predicado 2, passando para o lado de lá dele. Transforma-se então em Predicado 3 e fica de costas para o Predicado 2, como que ainda fora de cena.

O Predicado 2 fica ali, rente ao chão, desaparecido, diluído, pior que nada, a sentir-se tão mal que nem o consigo escrever.

Vira-se então para a frente o Predicado 3. E o Predicado 2 transforma-se instantâneamente em Sujeito 2. Que fica à esquerda do Predicado 3, que está, por isso, à direita do Sujeito 2.

Viram-se um para o outro.

Começa o Sujeito 2:

"Então?"

"Então o quê?"

"Então o que andas tu a fazer?"

"Nada de especial."

"Nada de especial? Não tens nada para fazer?"

"Não. Quer dizer… Tenho ali umas coisas para arrumar mas estava a pensar fazer isso amanhã."

"Amanhã porquê?"

"Porque já são quatro horas e é melhor começar amanhã e levar tudo a eito."

"E aquilo que te disse para fazeres a semana passada, já fizeste?"

"O quê?"

"Aquilo para organizares em cima e em baixo."

"Ah! Isso já está feito há muito tempo!"

"Pois, mas agora é preciso mudar tudo."

"Mudar tudo como?"

"Sabes aquilo que era para ser em cima? Agora é para pôr em baixo. E o que estava em baixo é para pôr em cima."

"Mas disse-me para pôr o que está em cima em cima e o que está por baixo em baixo!"

"Mas agora é para mudar tudo. É para pôr tudo ao contrário."

"Mas isso era como estava antes!"

"Exactamente! É para pôr como estava antes."

"Mas deu uma trabalheira pôr isto assim! Porque é que é preciso mudar?"

"Porque sim."

"Mas isto assim está bem! Para que é que tenho de mudar isto tudo outra vez?"

"Porque sim."

"Mas porquê?"

"Porque te estou a dizer!"

"Mas isto assim não é justo! Deu uma trabalheira enorme! Acho que o mínimo que pode fazer é dar-me uma explicação!"

"Não tenho que te dar explicação nenhuma. Digo-te o que tens de fazer e tu só tens que fazer, percebes? Não tenho que te estar a explicar tudo! Se te digo para fazeres, fazes! Entendido?"

"Isto assim não está certo!"

"Ouve lá, não quero saber se isto está certo ou errado. Quero que pegues nesta merda toda e vires isto tudo ao contrário. Percebeste? Ou é demasiado complicado para ti, hã? Pegas nesta pecinha e pois em cima desta coisinha! Depois pegas noutra coisinha e pois em cima desta merdinha! Tudo bem até aqui? Depois pegas no caralho desta merda e…"

"Já percebi. Também não é preciso falar nesses termos."

"Não é preciso o caralho é que não é preciso. Isto é sempre a mesma merda! Uma pessoa chega aqui e diz para fazeres as merdas, nas calmas, sem stresses, diz-te as merdas certinhas tal como tem de ser. Mas o senhor não! Não pode ser assim! Tem que fazer perguntas, tem que pôr tudo em causa, nunca faz as merdas à primeira. E então aqui o gravador tem de voltar a repetir tudo, a dizer as coisas todas outra vez. E mesmo assim o senhor ainda não está satisfeito, ainda não agrada fazer aquilo que tem de fazer e então foda-se! É claro que é preciso falar assim, pois pelos vistos, só assim é que o senhor percebe! Só assim é que consigo fazer entrar nessa cabeça que é preciso fazer isto e aquilo e acabar com esta merda de perguntas que não servem para nada, que não levam a lado nenhum. A não ser que estejas insatisfeito com a tua situação aqui e queiras mudar alguma coisa! Também pode ser isso. Mas se for isso mais vale dizeres e a gente revê a tua situação. É isso? É isso que queres?"

"Não, não é isso."

"Então qual é o problema?"

"É que não estava a perceber bem o que era para fazer…"

"Mas eu falo chinês ou quê, hã? Eu falo chinês? Responde!"

"Não…"

"Então já percebeste o que tens de fazer com esta merda? Hã?"

"Já."

"Óptimo! Foda-se, caralho! É preciso dizer as merdas quinhentas vezes, foda-se! Um gajo tem sempre que se chatear! Caralho!"

E rodeia o Predicado 3 passando para o lado de lá dele. Fica de costas voltadas para ele e transforma-se então na Predicada 4.

O Predicado 3 está chateadíssimo, resmunga sozinho, diz mal de si próprio, chama-se fraco, geleia, bosta humana, mas nota-se uma grande tendência para o conformismo, fruto de dezenas de outras situações semelhantes a esta no passado.

Volta-se então para a frente a Predicada 4. Que fica à esquerda do Predicado 3, agora transformado em Sujeito 3.

Viram-se um para o outro.

Fala primeiro a Predicada 4:

"Olá!"

"Então…"

"Então como correu o dia?"

"Correu…"

"E então?"

"Então o quê?"

"Pediste o aumento?"

"Não."

"Então porquê?"

"Estou com fome."

"Porque é que não pediste?"

"Porque não!"

"Mas tinhas dito que ias falar disso."

"Mas não falei, pronto. E não quero falar mais disso. O jantar já está pronto?"

"Não."

"Porquê?"

"Porque ainda não tive tempo."

"Não tiveste tempo? Então o que é que andaste a fazer o dia todo, pode-se saber?"

"Fui ao supermercado."

"Ah foste ao supermercado? O dia todo?"

"Não, só ao fim da tarde, depois de arrumar a casa."

"E p'ra que é que foste ao supermercado?"

"P'ra comprar coisas que era preciso."

"E fazer o jantar também não era preciso?"

"Foi para o jantar que fui comprar coisas."

"E a senhora não sabe que jantamos todos os dias? Que todos os dias é preciso fazer jantar? Se era preciso ir ao supermercado ias mais cedo!"

"E depois quem é que arrumava a casa? Eras tu?"

"Foda-se! Um gajo passa o dia inteiro a trabalhar, a carregar merdas dum lado para o outro, chega a casa nem a merda do jantar está pronto e ainda por cima tem de limpar a merda da casa?"

"Fala mais baixo, olha a criança."

"Quero lá saber da criança! Eu quero é o meu jantar no prato, e é já!"

"Ainda vai demorar um bocadinho…"

"Foda-se! Mas o que é que tu passas o dia a fazer? Um gajo mata-se a trabalhar e a senhora, que não tem mais nada p'ra fazer do que ir ver as montras e conversar com as amigas, nem sequer a merda dum jantar é capaz de ter pronto!"

"A 'senhora' não andou a ver montras nem a conversar com as amigas não senhora. A 'senhora' passou a tarde a arrumar a casa, a passar a roupa a ir buscar a criança à escola, a ir comprar o jantar. É isso que a 'senhora' andou a fazer!"

"Tu não me levantes a voz, ouviste? Não te admito que me levantes a voz, ouviste?"

"Eu não te levantei a voz."

"Era o que faltava! Um gajo trabalha o dia todo, a semana toda, para por o sustento em casa e chega a casa, a merda do jantar nem sequer está feito e ainda lhe falam por cima! Eu não te admito, ouviste? Eu não te admito!"

"Está bem, desculpa. Mas fala mais baixo. Olha a criança."

"Tu não me mandes calar, ouviste? Tu nem penses em me mandar calar! Eu falo o que me apetecer! Estou em minha casa! Esta merda é toda paga por mim! Pelo suor do meu rosto, percebeste? E estou-me a cagar para a criança. Se ouvir tanto melhor, vai aprendendo como é a vida, fica a saber que há merdas que um gajo não pode admitir duma mulher. Foda-se! Na minha própria casa! Agora vou lá para dentro ver as notícias. No meu televisor, comprado com o suor deste rosto! Quando voltar aqui quero a merda do jantar no prato, senão…"

E rodeia a Predicada 4, passando para o lado de lá dela, de costas voltadas para ela, e transforma-se no Predicado 5.

A Predicada 4 rebenta num choro soluçado, profundamente infeliz, e vai-se mexendo mecânicamente como que a fazer coisas, sentindo-se numa situação sem saída.

O Predicado 5 volta-se então para a frente e, instantâneamente, a Predicada 4 transforma-se em Sujeita 4.

Voltam-se um para o outro.

Diz então a Sujeita 4:

"O que é que levas aí na mão?"

"Nada."

"Nada é que não é. Mostra lá o que levas na mão."

"Não é nada."

"Ou me mostras o que tens na mão ou eu tiro-to à força!"

O Predicado 5 abre a mão lentamente.

"Que porcaria é essa?"

"É uma minhoca."

"Que porcaria! Vai já deitar isso fora e vai lavar as mãos imediatamente."

"Mas não faz mal, é só uma minhoca."

"Não quero saber. Deita já isso fora e vai lavar as mãos com sabão. E não sais de casa enquanto não arrumares o quarto."

"Mas eu já arrumei!"

"Arrumaste nada. Quero aqueles brinquedos todos no caixote."

"Mas eles estão à minha espera lá fora !"

"Então vai dizer-lhes que só sais de casa quando arrumares o quarto."

"Mas eles assim vão-se embora!"

"Tanto pior. Se tivesses arrumado o quarto como eu te disse, agora podias ir brincar à vontade."

"Eu arrumo amanhã."

"Não senhor. Já disseste isso ontem e o quarto continua desarrumado. Vai já arrumá-lo agora!"

"Não vou!"

"O quê? O que é que tu disseste? Repete já aquilo que disseste?"

"Disse que não vou!"

"Tu atreves-te a dizer-me que não?"

"…"

"Tu não saias ao teu pai, ouviste? Não sigas os maus exemplos do teu pai. Tu respeita a tua mãe! Agora vá imediatamente arrumar o seu quarto!"

"Não vou."

"Tu não faltes ao respeito à tua mãe, ouviste? Se a tua mãe te diz para fazer uma coisa tu fazes! Ou é preciso chamar o teu pai. É isso? Queres que eu chame o teu pai e lhe diga que me desobedeceste?"

"Não…"

"Então vá já imediatamente arrumar o seu quarto. E deita essa porcaria fora!"

O Predicado 5 atira, revoltado, a minhoca para o chão, e vai a sair para o quarto.

A Sujeita 4 trava o Predicado 5 com um grito:

"Volta aqui e apanha já esta porcaria! Já!"

O Predicado 5 contrariado e receoso aproxima-se da Sujeita 4, que lhe diz:

"Apanhas isso, vais deitar ao lixo e depois trazes a esfregona da cozinha e limpas isso tudo bem limpinho. Eu depois venho cá ver. Se não estiver bem limpo, juro-te que digo ao teu pai o que fizeste e ele dá-te com o cinto."

Enquanto vai passando para o lado de lá do Predicado 5, a Sujeita 4 vai dizendo:

"Peste do fedelho! Tem bem a quem sair!"

Fica então de costas para o Predicado 5 e transforma-se em minhoca.

O Predicado 5 ficou amuado, cabeça a olhar para o chão, de beiços, começa a pegar na minhoca que está no chão, contrariado, até que, progressivamente, se vai entusiasmando e vai brincando com ela puxando-lhe o corpo, esticando-a, rebolando-a. Transforma-se então em Sujeito 5.

Tira então do bolso um prego e começa a espetar na minhoca. Vai soltando exclamações de divertimento. Quando se cansa de brincar com a minhoca diz:

"Agora és um sapo!"

E começa a brincar com o sapo, a bater-lhe, a espetar-lhe coisas, até que se cansa e diz:

"Agora és uma mosca!"

E arranca as asas à mosca e fica a vê-la caminhar desasada até que a esmaga e diz:

"Agora uma formiga!"

E esmaga-a.

"Outra!"

E esmaga-a.

"Outra!"

E vai-lhe cortando o caminho com a mão à medida que ela procura fugir, até que a esmaga.

"Agora um escaravelho!"

Risca então um fósforo e com ele aceso começa a queimar o escaravelho, que se contorce queimado até parar.

"Agora és o pai!"

Fica a olhar para o pai, no chão, que não sabe o que o espera.

Diz então:

"Agora dá-me um beijo!"

E o pai, mecânicamente, levanta-se e obedece. O Sujeito 5 abraça-se então à cintura do pai, com força.

"Agora dá-me a mão!"

E o pai, mecânicamente, dá-lhe a mão.

"Agora diz que gostas de mim!"

E o pai, mecânicamente:

"Eu gosto de ti!"

O Sujeito 5 sorri, feliz, e saiem os dois de mão dada.

FIM

© Mário Montenegro – Julho de 2000




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